__Siga este fio!

É uma ordem, que sigo sem piscar. Vou atrás do fio, mas ele para na minha frente  como se fisgado; em seguida se estende e se arranca, vai fugir. Eu sofro o safanão mas preciso prosseguir. Agarro firme o fio pelas mãos; ele é grosso e ondula feito cobra e se atira para frente. Não há dúvidas no meu sonho: é pra ir, eu vou. E tem que ser levando o fio; ou puxado por ele, pouco sei.

Logo estou num túnel, ou na barriga de um elefante. Então, o mundo clareia. Agora, estou em uma mata. Sonho é assim mesmo. O fio está preso nos meus braços, forte e formoso. Aparecem outros; de repente são centenas de fios emaranhados; ninguém entende a trama. Por pouco perco o fôlego e o fio da meada, mas aos trancos, volto ao controle no meio do mistério.

A corrida continua; eu e o fio somos quase um. Ele se avoluma, como impetuosa raiz selvagem e se estende, me arrastando. Lá na frente, diante daquela torre, paramos, e nem acredito no que digo, aos gritos:

__ Rapunzel! Rapunzel! Sigo um fio de cabelo! Jogue as tranças!

Ela responde logo, com uma voz cortante e gelada de arrepiar qualquer pelo:

__ Estás atrasado! Estou ocupada. Volta outra hora.

Tinha lobo mau no caminho. Na hora, é o que me ocorre dizer a ela, mas não me arrisco. Não sei por quê, também omito o encontro com os fios embaraçados. Afinal, faço o pedido que ela conhece:

__ Dona Rapunzel, por favor… Jogue as tranças…

Um longo tempo se passa, enquanto em minhas mãos meu fio único, definitivamente forte, se retorce, dando-me grandes golpes nas pernas, insatisfeito. Por fim, me alegro com o que ouço:

__ Sobe! Rápido, que tenho pressa, estúpido incapaz!

__Rapunzel, senhora, senhorita… Princesa… Eu não trago escada, digo a ela, com cuidado.

__ Por acaso, sua torre já tem elevador? – Outro longo silêncio gelado se segue, enquanto meus passos circulam aquela exclusiva moradia, ótima para a Idade Média.

De repente, lá de cima caem as tranças e me atingem a cabeça. Foi como um desabamento da marquise de uma loja, caso eu passasse por uma calçada e ela se despencasse justamente sobre mim. Praticamente desmaio debaixo daqueles tantos quilos de cabelo amarelo. Com certeza, a cabeleira está há centenas de anos sem ver tesouras…

Saio de baixo daquela massa capilar, assombrado e assoprando pelos do nariz e, com certeza, muitos ácaros. Faltariam xampu, creme no toucador da princesa? Só pensei, é claro. Não diria em voz alta tal ousadia.

__Sobe logo, ou te dês por incompetente! Meu cabelo está horrível! Depressa! – gritou ela.

Solicito àquela voz lá do começo do meu sonho, que feche os meus olhos e os abra já dentro do quarto da princesa. Nesta parte, porém, noto que o sonho passa para uma modalidade em que nada acontece igual à mágica dos livros e dos filmes feitos de sonhos de verdade. Nem um tapetinho voador, simplesinho, para me botar lá no alto? Um clique de controle remoto? Não. A voz que me impusera essa missão, emudecera.

Tudo indica que terei que suar, de verdade, concluí. Sem outra solução, começo a subir. Bufando e tremendo vou me agarrando nas antiquíssimas tranças de Rapunzel, e galgando a torre altíssima. Foi um verdadeiro rapel; enquanto ainda ia suspirando pelos píncaros da glória. Como são difíceis, os sonhos, ufa!

E é neste game duríssimo que, afinal, adentro os aposentos da digníssima princesa, dona da mais famosa cabeleira das histórias. Recostada em sua cama de alteza, está a solitária Rapunzel a destrançar os incontáveis fios. Eles vão se espalhando pelo chão do quarto em novelos e novelos e novelos e novelos e novelos… – enquanto sobre eles o sol produz muitos e intensos reflexos de luzes amarelas.

__Humm… Está um pouco amareladinho o cabelo da princesa, digo para ela, com carinho. E não consigo mais nem piscar os olhos e nem fechar a boca, de tão espantado.

__ Acorda e trabalha! Quero que tu me faças mechas de todas as cores!

__Hã? Mas… Princesa?

__Imediatamente! – ordenou ela.

__Rapunzel, seus cabelos são tão maravilhosos, loirinhos! Refulgentes! Pra que mudar agora, amada nossa, belíssima encantada? – protestei.

Confesso que ia dizer mais alguma coisa, mas uma trovoada imperial soou na hora.

__Não é da tua conta! Quero mechas em tons cor de rosa, e outras em tons lilases; também quero alguns tons mais arroxeados. E quero mechas vermelhas, como o pôr-do-sol; outras de acaju acobreado. Também quero mechas negras como a noite profunda, e outras da noite na madrugada enluarada. Também me pinte mechas nos tons das folhas do carvalho. Ah! E os loiros como as flores dos ipês; ainda os loiros médios e os loiros cinza-claros. E algumas mechas bem verdes, e outras em distintos tons azulados, exatamente como têm os meus pássaros!

__ O quêê?? ma…ma…mas…

__ Faça! Ou vais ter um sonho de curta duração! Entre outras coisinhas más… – e lançou-me um terrível olhar ameaçador.

Neste momento, fico desejando somente encontrar um fio roto que fosse, desbotado e de pontas-duplas; o suficiente para me levar de volta para minha casa, onde eu possa descansar sem tinturas, sem embaraçados e sem sonhos. E sem famosas personalidades femininas. Mas não tem jeito.

__ Trazes as tintas? – diz a cabeluda, já um pouco abrandada.

Com isso, não preciso me preocupar. Uma gigantesca bolsa com frascos de tintas e pentes e cremes surge em meus braços na mesma hora. Engraçadas, as coisas; quando querem acontecer, simplesmente acontecem. Não preciso de esforços, pedidos, sacrifícios, nada.

Então, duas portas laterais se abrem no quarto, e lá está um salão de beleza completo que nos aguarda, deslumbrante. Gostaria de saber como esse salão entra na história, mas, deixo pra lá, nem importa, já estou acostumado com o ritmo da trama.

__Estou farta de ser somente e completamente loira – mais calma, ela começa a se expressar – Ademais, o mundo anda com outras cabeças. De muitas cores e estilos! Quero estar pronta para sair!

__ Mas… A senhorita é prisioneira na torre do castelo. Quer dizer, tem que morar aqui para sempre! Ficar esperando o Príncipe.

__Ora, ora! Centenas de anos aqui, plantada como uma árvore, esperando um sujeito todo dia? Francamente…

__ E tem que jogar as tranças quando te chamarem. A história é assim, Princesa…

__Jogo se eu quiser! E quer saber? Mudei de ideia. Corte esta cabeleira! Exatamente pela metade, estás me ouvindo? E pinte meus cabelos com as cores de todos os cabelos que há! Não ouse me contrariar num fio sequer!

__Oh, sim, senhora! Senhorita! Madame! Alteza!

Jamais eu iria contrariá-la. Tomo gosto pelo seu ponto de vista, e estamos neste exato momento negociando a questão do comprimento.

__Um pouco mais curto, Rapunzel, fica mais moderno, e sua aparência vai ficar ainda mais deslumbrante!

Ponho-me a trabalhar. Ponho-me a trabalhar… Ponho-me a trabalhar! Ponho-me a tra-ba-lhar!! TRABALHAR! Ufa. E então, algum tempo depois, está pronto. Está feito. O resultado… Humm… Daqui, ó!… Só vendo!

O olhar de Rapunzel cintila no espelho. Está feliz. Nada como atender a uma mulher que sabe o que quer.

__Oh! Não mais faltarei aos bailes da Cinderela! Nunca mais! Moderníssima!

E Rapunzel sacode nas janelas os lindos cabelos tingidos com todas as cores das cabeleiras de todas as mulheres do mundo, como desejava, e está sorrindo.

Então, a Princesa sopra sua alegria sobre as velhas e longas mechas cortadas que estão amontoadas pelos cantos do salão, do quarto, da sala e da varanda. Elas vão se espalhando e formam um redemoinho enorme, e giram, giram e voam, levadas pelos ventos e, de repente, um sopro também me alcança, junto com um estalado beijo.

Do nada, ou melhor dizendo, pelas artes das histórias, volto feliz para minha casa. Com alguma sujeira de tintas e pelos, é verdade.

Príncipes encantados e bruxas malvadas, que esperem como quiserem. Rapunzel de cabelos novos está outra, e esta noite ela dançará no baile. Somente precisava de um bom cabeleireiro, ora essa! Agora durmo bem.

 

07/09/2020

 

 

 

3 thoughts on “O fio e o sonho – um conto de princesa rebelada

  1. Sonia Sant´Anna says:

    Gostei do tom light que você deu à velha história de Rapunzel , que não mais aceita viver na torre seguindo o script traçado há séculos.

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