Francirene Gripp de Oliveira

De que falamos, quando falamos de poesia, ou de ficções literárias?

Certamente, de inumeráveis temas, a partir de perspectivas infindáveis e com propósitos por vezes distintos, a ponto de se constituírem em discursos excludentes um do outro. Essa curiosa contraposição me sugere o esquecimento de um fato simples, o de que os discursos sobre literatura, estão presos todos pelas costas uns do outros, ou seja, no dorso mesmo desse corpo língua linguagem literária, em si. Outro ponto que instiga minha curiosidade, é a enorme valorização dada à crítica, em certas instâncias de cultura, muitas vezes em detrimento da obra literária.  Penso que essas observações me vêm por julgar importante, no contexto atual, reafirmar o valor intrínseco da literatura, em sua complexa natureza de fenômeno da linguagem, esse misterioso resultado meio a meio entre cultura do humano, e o sensível, do indivíduo.

Escrever literariamente é tentar elaborar um “sentimento do mundo”; se posicionar como testemunha de uma época; tentar apossar-se da própria voz, e também tornar possível a emissão de outras falas, sons, ruídos vários, vindos das circunstâncias. E assim apresentar possíveis histórias de vida. Esse é um aspecto do trabalho árduo de se construir um romance, ou poemas, por exemplo. Sem esse desejo lírico pelo mundo, sem certa ânsia de se fazer e refazer o mundo pelas palavras, segundo a cumplicidade e os desafios da escrita, acredito, nada acontece. O texto fica sendo uma falsa casa, como aquelas erguidas para cenário de dramatizações.

Exatamente, não é o que acontece com o livro Os acampamentos insustentáveis, de Anelito de Oliveira, em que o leitor é acordado continuamente por ideias e emoções de alta densidade. São sensações, estimulações, constrangimentos, reconhecimentos, negações, reafirmações, surpresas – que se vão imprimindo no leitor, em volume de atribuições, enquanto o prazer estético acontece, devidos todos, à enorme competência do poeta.

O leitor é apreendido pela casa autoral de Oliveira, mas, conforme anunciado pelo título, não será abrigado em conforto, porque o propósito é discutir as asperezas de um estar no mundo, condicionado por certas relações insustentáveis. A metáfora das moradias em acampamentos, situação tão comum nestes tempos de êxodo, evoca temas que tratam de debilitados estados de provisoriedade e precariedade, tornados perenes para muitos grupos da sociedade.

O precioso poema de abertura, “A casa”, define uma procedência para a reflexão poética, segundo os fluxos de (re) criação da memória, e demarca vivências de impossibilidades e ausências, mas também de afetos: “O vazio / Por onde nossa mãe passava / Voltando esmagada depois / De mais um dia de sofrimento no campo / Mas com aquela alegria simples / Transcendendo humanidade” (p.15).

A poesia se lança para fora das janelas dessa casa interior, se desdobra e se distancia para alcançar espaços coletivos, onde insatisfação e conflitos condicionam perpetuamente certas subjetividades. Então, (irre)conhecidos sujeitos vão se afigurando:

canas fumaça lona preta o trem vinha dentro da mata/ lentamente o peso das coisas aquele suor descendo na / cara cabeças ardendo ao sol eu vi a fome uma criança/ no meio” (p.122).

dentro do silêncio 12 horas vomitando o lado mais/ profundo das coisa peles negras se arrastando entre/ merdas laranjas podres na boca tudo dispara contra o/ vidro e você mergulha engolindo/ tudo que” (p.123).

( ) o sono depois do almoço a sesta dos miseráveis farinha/ saindo da boca mosquitos passeando nos lábios/suor que se mistura (p.124)

Dizem os versos: “_ ninguém sonha. / _todos dormem. /_ como?/_na suspensão./ _de si?/ _ do mundo./_ como entender?/_ sonhando (p.30).

Sonhar o mundo para entendê-lo; ou entender o mundo como um sonho, ainda se feito de pesadelos: “O nome ‘mundo’ não é exatamente a coisa ‘mundo’ ” (…) “Compreender o que nos confronta – o inimigo mundo. (…) “imersos numa permanente desordem, tudo que temos a dizer, é, de modos diversos, sobre o drama dessa relação.” (p.99).

Nessa condição, um inquietado estado de autoconsciência emerge:

A um doente metafísico, em pleno século 21, tudo que se pode dizer é que lamentavelmente não há nenhum remédio disponível na farmácia de Platão, tampouco na de Derrida. Não foi uma boa ideia, portanto, estar doente, isto é, começar a fazer perguntas, desejar conhecer o que está por trás das aparências, sair à procura de essências. Há apenas aparências, atualmente – e a literatura, que é um mecanismo de atualização, apenas explicita essa realidade. (…) Mas, para além da razão cínica de cada dia, nada se escolhe neste mundo – e as perguntas explodem. (p.87)

A reflexão desvela o que parece inevitável: “É preciso reconciliar – pensava Hanna Arendt – (…) reconciliar no sentido de compreender o que é isso que nos dilacera. Sem reconciliação, passaremos a vida em guerra contra um inimigo que sequer conhecemos claramente, um inimigo sombrio” (p.89).

O autor deseja interferir: poeta interfere, o ensaísta interfere, o contista interfere. Talvez por isso, a relevância do hibridismo na composição: poemas em diálogos, poemas-cartas, poemas-ensaios, “transcontos desnarrativos”, notas de ocasião. E pouco a pouco, mundos vão se apresentando.

Diz a “oitava carta”: “fico pensando no que significa a prosa, já/ que é imprescindível para chegar até aí, no mundo,/onde você escuta rádio aeme e lava roupa -/ é começar a abordar isso, como polícia, que é como sempre se aborda, baculejos.”(p.67)

Na narrativa “O depósito”, assistimos a uma cena de assédio moral. A personagem vê, irremediavelmente, sua certeza ser manipulada até se transformar em dúvida e, por fim, em convencimento de culpa: “Chorava copiosamente, e não era um romance alencarino. (…) Não podia insistir em dizer que não tinha errado, tinha sim, e agora era o momento de reconhecer.(…) Ela, a atenciosa atendente, estava ali para ouvir. Bebe água, bebe.(…) O envelope estava vazio (…) Quem acreditaria nela? (p.111-112)

É possível separar-se por completo o vivido, daquilo que foi imaginado?  O que indaga aquele que mira como se fora um enigma, um rosto que vê debruçado sobre a escrita, mergulhado em seu mundo interior? Em “As suas escritas”, dois personagens se encontram diante da janela de uma casa, separados por um abismo de diferenças imensuráveis:

Preciso deixá-lo em seu canto com suas escritas, desolado em seu canto (…)perdido entre palavras(…) Foi indo eu não conseguia mais vê-lo, aquela bruma que o envolvia (…) Não podia falar para não fazer barulho (…) e suas escritas precisam de silêncio. Volte para suas escritas, que alimentam sua vida, que eu preciso ficar com a vida, que é analfabeta (p.135-6).

O autor conferiu ao livro o subtítulo “registros”, palavra que comporta a acepção de  escrituração de fatos que se impõe resguardar; e também, de escritura do corriqueiro que se deseja a salvo da corrosão do instante; são escritas, afinal, eivadas de desejo de comunicação – “cartas para ninguém”? (p.59) Certamente, não.

Assim, terminados de ler livro como esse, sente-se ímpetos de fazer voltar páginas – onde mesmo, aquela frase? Onde, aquelas exatas palavras? O leitor deseja, então, reviver o que se passou na leitura, participando, por esse modo, da (re)construção de mundo conforme o autor.

REFERÊNCIA

OLIVEIRA, Anelito de. Os acampamentos insustentáveis. Curitiba: Kotter Editorial, 2019.

fonte: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/poesia/1299-anelito-de-oliveira-o-acampamentos-insustentaveis

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